UM GÊNIO DO PETRÓPOLIS

Elisa Caiaffa é uma jornalista, de 25 anos,  recém-formada que tem o coração dividido entre Botafogo e Serrano. Em meio ao preto, branco e azul que ela carrega no peito, está um ídolo comum às duas torcidas: o inesquecível Mané Garrincha.

Movida pela curiosidade que todo bom repórter deve ter, ela passou o último ano levantando documentos, procurando fontes, pesquisando publicações antigas e fez a mais completa reportagem já produzida sobre a passagem de Garrincha pelo futebol de Petrópolis. Entre os achados, uma entrevista exclusiva com Afonso Moreirão, o técnico que trouxe Garrincha ao Serrano.  Moreirão, falecido há poucos dias, contou histórias inéditas sobre o craque dentro e fora de campo.

Além de Moreirão, ex-companheiros de Cruzeiro do Sul (primeira equipe que Mané defendeu em Petrópolis) como Paulo Rabello e Nenê Neumann dividem saborosas memórias da passagem de Mané pelos gramados da cidade.

A reportagem de Elisa Caiaffa traz mais clareza sobre o período e até algumas correções para a ótima biografia “Estrela Solitária”, escrita por Ruy Castro. Venha conosco numa saborosa viagem ao início dos anos 50, onde Petrópolis viu em primeiro mão a genialidade do Mané.

MANOEL SOBE A SERRA
Sai Magé, entra Petrópolis: público maior para seus dribles

Mané Garrincha escreveu seu nome na História do futebol com pernas tortas e dribles desconcertantes. O menino de origem humilde saiu de Pau Grande para conquistar o mundo e se tornar um dos maiores ídolos do Botafogo e da Seleção Brasileira, onde ganhou duas Copas do Mundo, em 1958 e 1962. Antes da consagração internacional, Manoel dos Santos viveu capítulos importantes de sua carreira em Petrópolis. 

Foi em 1952 – com a camisa do time juvenil do Serrano no recém-inaugurado estádio Atílio Marotti – que o melhor ponta-direita de todos os tempos começou a ser projetado para a glória. O ex-treinador das categorias de base do Leão da Serra, Afonso Moreirão, foi quem descobriu a verdadeira posição de Garrincha.

Segundo Paulo Rabello, 82 anos, ex-goleiro do extinto Cruzeiro do Sul (outro clube de Petrópolis que Mané atuou antes do Serrano), a ideia de ir para a ponta-direita não foi aceita pelo craque inicialmente. Paulo insinua que Moreirão “teve a audácia de roubar Garrincha do Cruzeiro e como não tinha vaga para o jogador, resolveu colocá-lo no lado extremo do campo”.
O ex-goleiro frisa que no momento que o ídolo experimentou a derrota de 2 a 1 para o antigo clube, deu adeus ao futebol petropolitano afirmando “que nunca jogaria naquela posição”. 

Embora resistisse, não teve jeito. Era o destino. E como Paulo acrescenta: “os anjos não disseram amém para a profecia”.

Convencê-lo a jogar em Petrópolis foi difícil, de acordo com Neném, 85 anos, outro ex-jogador do Cruzeiro do Sul. E, aparentemente sua partida se deu facilmente num impulso. Talvez até mesmo ele, amante de grandes histórias, duvidasse ao ouvir que um jovem pobre do interior abandonou o time da cidade vizinha – que o remunerava – por rebeldia. Porém, essa ida não definiu o adeus.

O protagonista de um dos mais peculiares contos do futebol tem raízes e, também, Cidadania Petropolitana – título concedido em 1958, pela Câmara Municipal. Por lá fez amigos, gols e história. A passagem de Mané na cidade é repleta de mistérios e divergências. Mas sem dúvida, os hiatos não mudam a importância de Petrópolis para o desenvolvimento do singular Manoel dos Santos.

GARRINCHA NO CRUZEIRO DO SUL

Antes de conhecer Afonso Moreirão e jogar no Serrano, Mané Garrincha atuou por uma temporada (1951) como meia-direita no juvenil do Cruzeiro do Sul, onde irmão mais velho dele, Zé Baleia, era goleiro da equipe principal. No extinto clube do Morin, Garrincha e os amigos, que vieram de Pau Grande, eram comandados por Arlindo Sanches. Na mesma época, Mané chegou a ser convocado para a Seleção Petropolitana.

Fazer parte do começo da carreira de um dos principais nomes da História do futebol foi um privilégio para poucos. Almir Neumann, o “Neném”, e Paulo Rabello, o “Paulinho”, lembram com detalhes do período em que atuaram com o ídolo. O futebol que encantaria o mundo alguns anos depois foi visto em primeira mão pela dupla, que defendeu o Cruzeiro do Sul ao lado do incontrolável Mané.

Paulo Rabello diz que as estupendas atuações de Garrincha no Chile não foram surpresa para ele. O protagonismo no time Bicampeão do Mundo, especialmente depois da lesão de Pele, era alcançado com o mesmo estilo de jogo dos tempos de Cruzeiro do Sul, quando Mané atuava no meio de campo, lançando a bola.

“Ele jogou no Cruzeiro do Sul como meia-direita e meia-esquerda. Se você quer entender o que era o Garrincha aqui, procure os VTS da Copa do Mundo de 1962. Quando o Pelé se machucou, o Garrincha teve que jogar por ele e pelo Pelé. Era mais ou menos assim quando ele jogava aqui solto pelas meias. O que ele fez no Mundial, para nós do juvenil do Cruzeiro do Sul não foi nenhuma novidade”, afirma o ex-goleiro.

Há 68 temporadas o menino alegre se unia ao plantel do Cruzeiro do Sul, e de maneira singular marcou os integrantes daquela equipe amadora que na época necessitava de reforços para o Campeonato Municipal. Nem mesmo o tempo ofuscou o orgulho que aqueles senhores sentem por terem convivido com o artista de pernas tortas. Neném carregou no bolso por anos a fotografia do juvenil do time do Morin de 1951, como prova que havia atuado ao lado de Mané. Paulo Rabello escreveu o livro “O Botafoguinho”, lançado em 1986, e dedicou um capítulo inteiro aos momentos com o ídolo.

Quem trouxe Mané para jogar em Petrópolis foi o irmão dele, Zé Baleia, que era goleiro no Cruzeiro do Sul. Inicialmente, a ideia de deixar os campos de várzea de onde morava para seguir os passos do irmão mais velho em Petrópolis não era muito atraente.

Prestes a completar 18 anos, Mané era muito apegado à rotina em Pau Grande. Segundo Neném, foi difícil convencê-lo. Por orientação de Baleia, o técnico Arlindo Sanches foi à casa de Amaro, pai de Garrincha, convidar o menino e seus amigos para defenderam o Cruzeiro do Sul. Naquela época, Mané trabalhava numa fábrica de tecidos. Mas esse período não duraria muito tempo.

DE TREM ATÉ O MORIN
Cruzeiro do Sul foi o primeiro time de Garrincha na cidade

Almir “Neném” Neumann era meia da equipe juvenil do Cruzeiro do Sul no começo dos anos 50. Aos 85 anos, ele é uma das principais testemunhas da passagem de Garrincha pelo futebol de Petrópolis.
“Nestor Garcia era o diretor do Cruzeiro, Arlindo Sanches era o técnico dos juvenis e o Braulio o auxiliar. Iam os três lá em Pau Grande e, por coincidência, passaram no bar onde eu estava e me chamaram pra ir com eles. Fomos no carro do seu Nestor até Pau Grande na casa do Garrincha pro pai autorizar a vinda. Foi difícil convencê-lo, o Cruzeiro ofereceu a ele uma passagem de trem e um dinheirinho. Era pouco, mas como precisava reforçar o time… Estavam preparando a inscrição para o campeonato do ano seguinte”, lembra.

Junto com Garrincha, o Cruzeiro do Sul trouxe de Pau Grande os jogadores Cececo, Batista e Arlindo Chaminé. Todos recebiam salário, embora singelo. Quando aceitaram a proposta do time do Morin, eles passaram a fazer diariamente a viagem de Magé até Petrópolis de trem. O trajeto de pouco mais de vinte quilômetros pela Serra Velha era repleto de verde e tinha vista para a cidade maravilhosa. O ambiente de proximidade à natureza e de diversão se tornava cada vez mais familiar para Mané Garrincha que cresceu em meio às matas.
“Ele era muito bom, não faltava. Subia de trem com os colegas e soltava aqui no Alto da Serra. O diretor ficava esperando e depois os levava pro clube pra trocar de roupa. Geralmente ele vinha no trem das seis e meia e chegava aqui sete e quarenta e cinco, quase oito horas. Quando eles chegavam, nós já estávamos lá. Eles almoçavam no clube”, ressalta Neném.

Os novos contratados mostraram rapidamente que dariam conta do recado. Para o ex-goleiro Paulinho, Garrincha não era o craque da equipe. O nome de destaque vindo de Pau Grande era Arlindo Chaminé, meia-esquerda. Entre os atletas também estava Cececo, irmão do centroavante Diquinho – jogador que atuou pelo Cruzeiro do Sul em 1950 e, nas duas temporadas seguintes, foi o craque do bicampeonato juvenil municipal do Serrano, garantindo a artilharia em 1951.
“Arlindo Chaminé era um meia-esquerda, pra mim o melhor de todos, o cara tinha um chute espetacular, uma canhota de respeito e muito fôlego. Depois o pulmão foi corroído por causa do cigarro”.

Embora Chaminé chamasse atenção por conta da força na perna esquerda, o talento de Mané era inquestionável. O jeito peculiar é até hoje lembrado pelos ex-companheiros que narram detalhadamente os dribles e as jogadas inusitadas. Mané Garrincha também costumava balançar as redes com frequência. Nas vitórias do time na Liga, o então meia-direita guardava os dele. Na goleada por 6 a 1 contra o Flamenguinho no Campeonato Municipal de 1951, Mané marcou duas vezes.

“Eu me lembro do Garrincha fazendo gol, driblando. Ele era destaque em qualquer time, mas tinha muito garoto bom de bola. Ele era rápido. Se deu bem no nosso juvenil. No campo ele era danado”, conta Neném. 

“Ele era muito moleque, muito alegre. Um contador de ‘mentira de caçar’. Ele gostava de caçar. Ele caçava tudo, mas era mais passarinho. Os colegas dele eram muito legais, e ele era o mais tímido de todos. Ele só gostava de mato, se desse um bodoque ele ficava todo prosa. A gente batia um papo, tomava uma cachacinha ou uma cerveja”.

Já Paulo Rabello tem outras lembranças do comportamento de Garrincha. “Ele era recolhido. Como ele era remunerado, pode ser que ele se sentisse constrangido pelos colegas de time não serem. Ele era um pouco arredio, trabalhava como carregador lá na fábrica de Pau Grande. Teve um domingo que ele veio aqui jogar com o cabelo branco do carregamento de algodão que tinha feito. Cumpria o papel dele. ‘Qual é o meu papel aqui? É jogar futebol pelo Cruzeiro do Sul?’ Então, ele jogava. Dentro do campo a gente se entendia. Fora do campo a gente brigava pra ver quem ia pegar a toalha menos furada (risos)”.

Por conta de tamanha destreza, o menino Mané ganhou prestígio e reconhecimento na cidade chegando a ser convocado para a Seleção Petropolitana pela primeira vez em 13 de dezembro de 1951, na preparação para o Campeonato Fluminense da Juventude. Digno do sucesso, o atleta começou a despertar o interesse de outros times da região. Mas para Paulinho, o jogo que decretou a saída de Mané Garrincha foi o da derrota de 4 a 2 para o Serrano no Campeonato Juvenil de 51.

“Foi no campo do Cruzeiro do Sul. Nosso técnico reuniu o time, e disse: ‘olha, nós vamos ter que jogar para nos defender, porque olhando jogador por jogador não dá para comparar nosso time com o Serrano’. Então, nós entramos em campo psicologicamente derrotados. Com dez ou vinte minutos estava 3 a 0 pro Serrano. Como o Serrano já facilitou as jogadas e o nosso time criou um pouquinho de vergonha pra não apanhar de muito, o primeiro tempo terminou em 3 a 0. E no intervalo vai dizer o quê? Aí a turma começou: ‘olha vamos jogar a bola pro Garrincha, vamos jogar pra ele’.

Antes dele receber a primeira bola, o Serrano fez 4 a 0. Tudo bem. Aí começaram a dar a bola pro Garrincha. E ele começou a driblar um, driblar dois, driblar três. E acabou fazendo os dois gols do Cruzeiro do Sul. Perdemos de 4 a 2. Mas ele ‘estraçalhou’ a defesa do Serrano. Foi quando o Serrano colocou a ‘butuca’ em cima dele”. 
Neném descreve a saída de Mané: “O pessoal do Serrano foi lá. O Garrincha era duro, operário, precisando de dinheiro. Pô, um time oferecia dinheiro pra ele e ele ia, até eu ia”.

MANÉ GARRINCHA É DO SERRANO! 
Conheça os bastidores da chegada do futuro ídolo ao clube

Seis temporadas antes de se tornar o ponta mais famoso do mundo com a conquista da Copa da Suécia em 1958, Mané Garrincha brilhava no juvenil do Serrano. Lá, o craque fez poucas partidas, mas a passagem teve enorme significado na carreira do Anjo das Pernas Tortas: o treinador Afonso Moreirão foi o primeiro a escalá-lo com a camisa sete.

A transferência aconteceu oficialmente em 25 de abril de 1952, ano que a garotada conquistou o Bicampeonato Municipal Juvenil. Naquela temporada, Garrincha não vestiu apenas o manto azul e branco do Leão da Serra. Pela Seleção Petropolitana, dirigida por Walter Nicodemos, honrou as mesmas cores usando o escudo da LPD na disputa do Campeonato Fluminense.

Moreirão, aos 94 anos, aparenta não se envaidecer com o fato de ter descoberto a posição que faria do menino Mané o melhor de todos os tempos – eleito pela FIFA no ano 2000. Segundo o ex-treinador, que se diverte ao recordar os momentos ao lado do ídolo, “Garrincha não tinha posição e jogava de tudo”.

Foram muitos os encontros entre os dois. Ao longo do tempo, Garrincha viu Moreirão como técnico, árbitro e até manobrista de um cassino clandestino. Comandante e atleta colecionaram histórias emocionantes juntos – do início de carreira promissor do ídolo aos seus últimos anos de vida, já doente – em todas, Afonso Moreirão dá destaque à simplicidade de Mané, e o define como o dono de um coração que não era dele. “Era um sarro, uma parada, um amigão meu. Ele só andava de chinelo, não ligava pro azar. Ele não era mole não, não ligava pra vida. Foi um bom garoto Ele era uma criança crescida. Um dia eu fui pra casa do Garrincha, e ele estava num pé de goiaba. Era muito moleque, um bobão. Só andava com bodoque, com aquelas atiradeiras. Uma vez ele veio à pé de Raiz da Serra até aqui, pra jogar no Serrano”.

Outro ídolo do Botafogo está na memória de Moreirão. “Garrincha quando chegou lá, moleque, já começou a pegar o Nilton Santos de João. Nilton Santos ficou maluco com ele. Isso foi logo no primeiro treino dele no Botafogo. Ele (Nilton) não saia daqui de Petrópolis, mas não era farrista, não”.

O ex-treinador e dirigente veio de uma família serranista apaixonada, que por muitos anos se envolveu nas questões políticas do Leão da Serra. Na adolescência chegou a ser atleta de hóquei do Serrano, mas admite que não levava muito jeito com o esporte. Um dos irmãos de Afonso, o Alfredo, fez parte do conselho deliberativo e chegou a ocupar por várias vezes as funções de secretário geral e de tesoureiro.

Moreirão foi próximo a personalidades fundamentais na história do clube, como o ex-presidente Atílio Marotti – falecido em 1949 quando buscava recursos para a construção do estádio do Serrano, que acabou sendo inaugurado em 1951 levando o nome do militante. Afonso inclusive desfilou com seus atletas, que no ano seguinte receberiam Garrincha e conquistariam o bicampeonato municipal, na festa de abertura.

No período que comandou o juvenil, quem presidia o Leão da Serra era Afonso Paoni, que em 1963 passou a batizar o ginásio do Azul e Branco. Este dava ao xará liberdade para montar o elenco que que quisesse. Os recursos financeiros para bancar as escolhas do então treinador vinham de Antenor Muniz Dias, diretor de futebol. Ele trabalhava como lanterneiro e pintor de carro, e se responsabilizava em pagar os atletas de Moreirão.

O time juvenil do Serrano era invejável, contava com um pelotão de grande qualidade. Porém não era o bastante para o comandante que ficou de olho no meia-direita do Cruzeiro do Sul. De acordo com Afonso Moreirão, Arlindo Sanches tinha ciúmes dele, assim como Walter Nicodemos. E a relação, que não era lá das melhores, chegou a piorar quando o técnico do time do Morin viu o algoz levar Garrincha.

“Tinha que ver a confusão que deu (longa gargalhada). Eu tinha um amigo que era goleiro do juvenil, o Airton, que trabalhava no escritório em Raiz da Serra, na fábrica de algodão. Na amizade que eu tinha, fui conhecer um parente do Garrincha que era motorista do antigo matadouro. Então, ele me apresentou esse garoto, e dali conversa vai, conversa vem, e me enturmei (risos). E nessa, eu consegui conversar com o Garrincha pessoalmente e o convenci a vir pro Serrano. Tenho certeza que ele nem acabou o campeonato no Cruzeiro do Sul”.

Neném e Paulinho acusam Afonso Moreirão de ter “roubado o Garrincha deles”. Os ex-jogadores do Cruzeiro do Sul insistem que o treinador ofereceu uma alta quantia em dinheiro para Mané Garrincha abandonar o clube. Moreirão desmente, diz que tudo isso não passa de “conversa” e que o valor dado à Mané era “uma bobeirinha para a passagem” – paga por Antenor Muniz, diretor de futebol juvenil – mas acabava nas mãos de Zé Baleia, que sempre levava as “vantagens” através do irmão mais novo.

“Eles ficaram doidos comigo. Eu sabia conversar com os jogadores, arrumava namorada pra eles. O Garrincha era gente boa, andava só de chinelo e todo ‘esculhambado’. O pai dele trabalhava numa cancela lá em Raiz da Serra, onde atravessava o trem. Eu estava sempre lá. Tinha esse goleiro irmão dele, o tal de Baleia, era esse que levava as vantagens com todo mundo, menos comigo. Nesse tempo, eu estava no Serrano e o presidente era o Afonso Paoni, que me dava todos os direitos pra eu arrumar quem quisesse. Quem ajudava financeiramente não era o Serrano. Era o Antenor Muniz, que trabalhava como um louco”.

PRIMEIRA SELEÇÃO: A MUNICIPAL
Antes de estrear pelo Serrano, Mané defendeu Petrópolis

Enquanto não jogava oficialmente pelo Leão da Serra, e iniciava as atividades de preparação para o Campeonato Municipal, Mané Garrincha defendia a Seleção de Petrópolis, no desafio do Campeonato Fluminense da Juventude. Neste período, ele se aproximou de Alcibíades Lopes, lateral-direito do Petropolitano FC.

Alcibíades também teve uma curta passagem pelo Serrano, mas precisou abandonar o futebol para se dedicar aos estudos em Minas Gerais. Ele é irmão do atacante Gilberto, que jogou com Garrincha no Cruzeiro do Sul. Aos 86 anos, o ex-lateral conta que na Seleção era ele o “responsável pela organização do time em campo”, mas que Mané não precisava de suas instruções.

São poucas as lembranças de Alcibíades sobre o Campeonato Fluminense da Juventude daquele ano. Porém, ele enaltece o humor de Garrincha e a parceria dele com Diquinho, centroavante do Serrano que também vinha de Magé. “Garrincha ria o tempo inteiro. Ele tinha dificuldade pra sair de Magé, e era sem palavra. Mas não tinha maldade, era muito infantil. Brigavam com ele, e ele nem ligava. Ele era muito legal. Nós jogávamos perto um do outro, pra ele eu não precisava dar instruções. Ele e o Diquinho eram muito bons. Já tinham até fãs que acompanhavam os jogos”.

Afonso Moreirão garante que o jogador do Petropolitano tinha lá qualidades, mas era “encrenqueiro”. Os dois já se envolveram numa briga no estádio Atílio Marotti durante uma partida. Desentendimentos eram comuns, o ex-treinador tem vaga recordação de um dia que levou Mané Garrincha para casa dele após uma discussão com Walter Nicodemos, treinador da Seleção Petropolitana. 

Apesar do contexto de discórdias, Garrincha criava raízes na cidade e laços de amizade com o comandante. Moreirão revela que levava a garotada para dormir na pensão de seu irmão na Rua Floriano Peixoto. Além disso, participava da vida amorosa dos atletas. O ex-treinador acompanhou o início do namoro de Mané Garrincha com Nair, e demonstra muito carinho pela primeira esposa do ídolo. Nas palavras dele, “Nair era a vida de Garrincha”. De Diquinho, ele foi padrinho de casamento.

Os meninos de Magé estavam cada dia mais próximos do técnico que com brio os defendia, e deixava claro aos adversários que a dupla pertencia ao pelotão serranista. Garrincha e Diquinho haviam se tornado os protagonistas do futebol juvenil de Petrópolis. E a fama deles não ficou apenas na cidade, os dois passaram a ser cobiçados por times grandes da capital. Moreirão revela que Giulite Coutinho, quando acompanhava um jogo da Seleção Petropolitana contra América, ficou fascinado com Garrincha.

“O Giulite Coutinho, presidente do América, ficou maluco com ele! Mas não sei o que houve que o Botafogo entrou na frente. O Diquinho foi treinar no Fluminense e tremeu. Mas os dois juntos bagunçavam. Eles eram uma parada”.

Passados os jogos da Seleção Petropolitana, Afonso Moreirão finalmente poderia contar com Mané e se preparar para a disputa do Municipal. Meninos bons de bola não faltavam no Leão da Serra. A equipe que havia conquistado o campeonato no ano anterior em cima do Flamenguinho com a vitória por 3 a 0 – com gols de Nelsinho, Diquinho e Guerreiro – se manteve sólida. O plantel “quase perfeito” do Serrano contava com Alcides; Friaça e Alegria; Lízio, Guerreiro e Orestes; Alaripe, Diquinho, Nelsinho, Passarinho e Hélio.

E, então surgiu mais um desafio para o técnico: encontrar um lugar para o craque. Onde mexer naquele time impecável? Eram muitos os questionamentos. Com o meio-campista Lízio, seu homem de confiança que vestia a 10, o ex-treinador não poderia mexer. Guerreiro, meia-atacante que “fazia partidas soberbas”, e Diquinho, centroavante “artilheiro”, eram intocáveis. E agora, Moreirão?

HORA DE ASSUMIR A CAMISA SETE
Garrincha se tornou ponta no Serrano com Afonso Moreirão

Com tantos jogadores se destacando no time juvenil do Serrano, o técnico Afonso Moreirão viu que colocando Mané Garrincha na ponta-direita teria a linha de ataque ideal. Moreirão apostava que Mané daria conta de qualquer posição e como não estava satisfeito com Nelsinho, que vestia a sete, o mandou para o banco.

“Eu tinha o time todo, só faltava o sete, e como ele jogava em qualquer posição… No Cruzeiro ele usava a 10 e era até meia-direita, depois que eu passei pra ponta-direita. Mas não adiantava dar instrução. Eu o colocava pra jogar (risos), ele era meio “pancada”. Tinha que ver, eu o colocava na ponta-direita e ele ia pra ponta-esquerda. Ele não tinha posição. Às vezes tava lá de beque pegando bola. Garrincha era maluco. Dava show de bola já. Fazia o que queria. Ele era um sarro. O cara o marcava, e ele ficava conversando. Ele era um artista. Era meu amigão. Garricha foi campeão com o Moreirão (risos)”.

Foram poucas as participações de Mané Garrincha no Serrano. Nem mesmo Moreirão sabe ao certo quanto tempo o ídolo atuou por lá, mas lembra com muita empolgação que ele esteve presente na festa da conquista do bicampeonato e recebeu as devidas homenagens.

“Ficou pouco tempo no Serrano, jogou umas três ou quatro vezes. Eu vou ser sincero ao dizer que ele foi homenageado e tudo quando nós fomos campeões no juvenil, e já não estava mais lá. Ele fazia gol. Ele pegava a bola na defesa e saia driblando todo mundo. Ele foi transferido antes de acabar o campeonato, mas ele fez parte da festa do Serrano”.

Afonso também não terminou o campeonato no comando do time, sendo substituído por João Costa. E mais uma vez a garotada conseguiu garantir o Municipal em cima do Flamenguinho, dessa vez por 1 a 0. A campanha foi impecável, nove vitórias, dois empates e apenas uma derrota, justamente para o Cruzeiro do Sul. O ponta-direita Nelsinho, que havia ido pro banco após a chegada de Garrincha, dividiu a artilharia com Henrique, chegando à marca de 11 gols.

O ex-treinador sustenta que equipes do Rio vinham treinar no estádio Atílio Marotti. E Mané Garrincha foi observado num amistoso por Araty, ex-jogador do Botafogo e da Seleção Brasileira, que no ano seguinte o tirou do amador Esporte Clube Pau Grande direto para o Glorioso.

Já Paulo Rabello, expõe outra versão sobre o tempo que Mané passou no Serrano. Segundo o ex-goleiro do Cruzeiro do Sul, Garrincha foi para o Leão da Serra ser tapa-buraco e o que havia sobrado apenas a camisa sete. De acordo com Paulinho, Afonso Moreirão teimou que Mané fosse para a ponta-direta e aborreceu o craque que, logo na primeira partida do Torneio Início, jogou mal e se despediu de Petrópolis.

“O Moreirão, depois de levar o Garrincha pro Serrano, teve a ousadia de não achar lugar pra ele. Então, quando teve o Torneio Início do campeonato de 1952 que o Cruzeiro do Sul venceu. O Garrincha foi escalado como ponta-direita, perdeu logo o primeiro jogo e se despediu da gente, se despediu do Serrano e de Petrópolis dizendo mais ou menos as seguintes palavras não proféticas: ‘Eu nunca fui ponta-direita, não sou ponta-direita e nunca serei ponta-direita nem no Serrano nem em lugar em nenhum’. Resultado: depois ele foi pro Pau Grande, recém-saído do juvenil, o time era muito bom e sobrou pra ele a ponta-direita. Foi quando o Araty o descobriu. Os anjos não disseram amém às palavras dele e à desaprovação total ao Moreirão”.

O ex-treinador reconhece que insistiu com Mané para que ele atuasse na ponta-direita, mas assegura que isso não o deixou chateado e que muito menos seja este o real motivo para que o ídolo abandonasse o Serrano. Afinal, “ele jogava tudo” e “voltou para a festa do bicampeonato”. As exposições de Paulinho e Moreirão não são diferentes apenas na questão da saída de Garrincha do Serrano: a ida do craque para o Botafogo é outro ponto que gera divergências.

Em 14 de julho de 1953 – um mês depois  de Mané Garrincha assinar seu primeiro contrato com o Glorioso – a Liga Petropolitana de Desportos emitiu um ofício em resposta à Federação Fluminense de Desportos referente ao interesse do time da Estrela Solitária em Mané. No documento, a Liga comunicava que “o Serrano nada tinha a se opor á transferência do jogador desde que fosse indenizado em Cr$ 2.000,00” (valor estipulado pela Lei de Transferência de Futebol Profissional).

O ex-goleiro Paulinho afirma nem a LPD – responsável pelo passe dos jogadores – nem o Leão da Serra lucraram com a venda de Mané para o Botafogo. Já Moreirão diz que o Azul e Branco recebeu a indenização pela negociação.

REENCONTROS
Em 1965, Afonso Moreirão pôde acompanhar mais uma vez de perto o sucesso de Mané Garrincha no campo. O agora árbitro apitou a preliminar juvenil: Paredense x Petrópolitano, num amistoso em que o Brasil venceu País de Gales por 3 a 1 no Maracanã.

“Depois que eu apitei o juvenil, fiquei ao lado dele lá. Assim que acabou o primeiro tempo ficamos conversando. Ah, o Garrincha era um amigão meu, estava sempre comigo. Eu fiquei feliz naquela preliminar, ele esteve comigo lá antes do jogo e acabou fazendo um dos gols”.

Anos depois, Petrópolis voltava a ser cenário para as aventuras de Mané Garrincha. Eram comuns as vindas à cidade ao lado da segunda esposa dele, a cantora Elza Soares. Afonso Moreirão comenta que trabalhou como manobrista em um cassino clandestino frequentado por Garrincha – que também marcava presença em bares da região, como a Casa D’Angelo.

“A vida do Garrincha em questão de mulheres era uma parada. Depois de muitos anos, eu trabalhei como manobrista num cassino clandestino que era do Joãozinho, da loteria, e do Pirulito, banqueiro. Naquele tempo, Garrincha não estava mais com a Elza. Ficou com uma cantora de nome, a Norma Bengell. Ele gostava de loira e era um sarro. Ele virava pra mim e falava: arrumei mais uma”, relembra.

“Ele ia jogar no cassino e já andava bem arrumado. Chegou lá com um carrão, deixou a chave comigo e disse que eu poderia dar uma volta. Nesse dia ele ganhou uma ficha de mil na roleta e deu pra mim. Quando fui jogar, perdi (risos)”.

O RECONHECIMENTO DE PETRÓPOLIS
 Autoridades, ex-treinadores e o povo celebraram Mané em 58

Na maior festa que Petrópolis já organizou para homenagear um atleta, o novo ídolo da Seleção, que dias antes havia conquistado a Copa do Mundo, recebeu mais um título: o de Cidadão Petropolitano. Em 11 de julho de 1958, Mané Garrincha voltou à cidade que o o projetou para a glória e reencontrou seus antigos treinadores Arlindo Sanches e Afonso Moreirão.

Depois de brilhar na Suécia e se tornar um dos nomes mais comentados do futebol mundial, Garrincha fez novamente pela Serra Velha a viagem de Petrópolis até Magé – dessa vez no carro do prefeito Flávio Castrioto. O ídolo foi homenageado pelo Serrano, autoridades e empresários, e aclamado pelos fãs, que lotaram as ruas do Centro Histórico.

Do Leão da Serra, Mané Garrincha ganhou uma flâmula, e um troféu de bronze, entregue por Afonso Paoni. Além disso, se tornou cidadão petropolitano por indicação do vereador Carlos Julio Plum. Cruzeiro do Sul e a LPD também prestaram homenagens ao talento genial que Petrópolis conheceu em primeira mão. 
Ao longo da investigação que culminou nesta edição especial do Jornal do Serrano, a repórter Elisa Caiaffa cruzou dados, checou documentos e encontrou algumas diferenças em relação às datas da passagem de Garrincha pelo Serrano.

O cartão de identificação de atleta de Garrincha no Serrano Football Club é datada de 17 de abril de 1951, o que induziu ao erro historiadores do clube e biógrafos do jogador. Manoel dos Santos chegou ao Serrano em abril sim, mas em abril de 1952. Esse erro histórico foi encontrado na busca de jornais publicados em Petrópolis na época. As publicações esclarecem que Garrincha passou 1951 defendendo o Cruzeiro do Sul, ano em que o Serrano foi o campeão municipal entre os juvenis.
Mané chegou para reforçar o time em busca do bicampeonato juvenil. E embora não tenha ficado até o final da competição, foi lembrado nos jornais após a vitória por 1×0 sobre o Flamenguinho que valeu ao Leão da Serra o segundo título seguido. A escalação do jogo final era Paulo, Caveira e Barrinhos; Lízio, Pão Doce e Vecchi; Nino, Henrique, Diquinho, Nelsinho e Baiano. O técnico era João Costa.

O CRAQUE MAIS BARATO DE TODOS 
Há dúvidas sobre valor exato, mas certeza que foi pechincha

Não foram encontradas divergências apenas na data de chegada e no período que Garrincha passou no Serrano. O valor pelo qual o jogador foi negociado também é motivo de controvérsia.

No livro Estrela Solitária, Ruy Castro diz que o Botafogo pagou ao Serrano 500 cruzeiros para ter Garrincha. A negociação foi efetuada em junho de 1953. O valor seria equivalente, na época, a 27 dólares. Segundo Castro, seria o valor aproximado a ser pago por uma bicicleta naqueles tempos.
Nos arquivos da LPD que o Jornal do Serrano teve acesso, foi encontrado o ofício acima, enviado pela Liga Petropolitana de Desportos ao presidente da Federação Fluminense de Desportos.

A cópia obtida é de 14 de julho de 1953, e revela que o Serrano estaria de acordo com a transferencia de Garrincha ao Botafogo desde que fosse indenizado em 2 mil cruzeiros, ou 108 dólares, seguindo o parâmetro adotado por Ruy Castro.

Se foram 500 ou 2 mil cruzeiros, uma coisa não muda. A contratação de Garrincha foi a maior pechincha da história do futebol mundial. É difícil imaginar o que poderia ter acontecido com o Serrano se o clube conseguisse reter o talento indomável de Mané Garrincha.

Outro ponto que deixa dúvidas é o momento exato em que Garrincha deixa de ser meia direita para virar um ponta. Ruy Castro, em Estrela Solitária, diz que a mudança teria acontecido depois da passagem pelo Serrano, quando Mané defendia o amador Pau Grande Futebol Clube. No livro, Ruy diz que Garrincha jogou como meia-direita no Serrano. O relato não coincide com que foi apurado com o treinador de Mané no Serrano, Afonso Moreirão,  que teve sua versão confirmada no livro “Garrincha – O Demônio de Pernas Tortas”, de Renato Peixoto dos Santos. 

Castro diz que Garrincha teria virado ponta por causa de um meia chamado Vu, por decisão do treinador Duarte Pinto, do Pau Grande. Mas, cronologicamente, essa mudança teria sido depois da opção de Moreirão em transformar Mané num ponteiro.

As versões diferentes não alteram o fato de Garrincha ter sido o mais espetacular de todos os jogadores. Seu legado é eterno e indiscutível.

Texto: Jornalista Elisa Caiaffa